Jorge, o Vitorioso
O Santo Megalomártir Jorge, o Vitorioso (séc. IV), é um dos mais venerados santos taumaturgos da Igreja, responsável pela conversão da esposa do imperador mais tirânico da história do Império Romano. Seu incrível e único relato de vida corresponde ao maior artigo desta enciclopédia. São Jorge é comemorado juntamente com as milhares de testemunhas de sua gloriosa vida, entre as quais conhecemos Policrônia, Gerôncio, Atanásio, Anatólio, Protoleão, Escolástica e Glicério, no dia 23 de abril (se a Grande Páscoa ainda não tiver ocorrido, a comemoração é postergada para a Segunda-Feira Luminosa).
A Mártir Alexandra, Imperatriz de Roma é comemorada em 21 de abril, quando foi martirizada juntamente com os santos mártires Isaque, Apolo e Quadrado. As santas testemunhas Vitor, Zótico, Zenão, Acindino, Severiano, Cesário, Cristóvão, Teonas e Antonino foram martirizadas no dia anterior, em 20 de abril. Eusébio, Neão, Leôncio, Longino, Danabo, Demétrio, Nestabo e Cristóvão tiveram o mesmo glorioso fim, em 24 de abril. Santa Vitória também creu em Cristo pelos milagres do grande mártir, e recebeu sua coroa em 25 de abril.
O calendário eclesiástico também celebra a consagração da Igreja de São Jorge em Kiev no dia 26 de novembro e da Igreja de São Jorge em Constantinopla no dia 24 de abril. Além dessa data, a Igreja honra o santo nos dias 8 de julho pela Sinaxe de Todos os Santos Militares, em 3 de novembro pela transladação de suas relíquias e em 10 de novembro pelo início de suas torturas. São Jorge também é padroeiro de toda a Geórgia e da Montanha Santa (atrás da Mãe de Deus).
Vida
Jorge nasceu no século III na província da Capadócia (atual Turquia oriental), vindo de uma próspera família cristã pertencente à nobreza romana. Em sua juventude, durante o reinado de Diocleciano (284–305), seu pai Gerôncio foi levado em julgamento, pois havia sido proibido que os cristãos permanecessem no exército. Perante o tribunal e sua família, o militar proclamou: “Prefiro morrer por Cristo a traí-lo por medalhas e honras.” Por sua confissão, São Gerôncio foi brutalmente martirizado em frente a Policrônia, sua esposa, e Jorge, que ainda era uma jovem criança. Ambos viram seu espírito ser levado aos Céus pelos anjos.
Policrônia fugiu para a sua terra natal em Lida na Síria com seu filho, e desde então passou a criá-lo na mais profunda Fé cristã. Ela dizia: “Teu pai, meu filho, está próximo ao Trono de Deus, onde ele sempre desejou viver. Mesmo que nós não mais o vejamos, ele anda ao nosso lado e protege-nos do mal, nossa casa possui um grande e poderoso protetor. Que Deus nos faça dignos também de confessar nossa Fé e oferecer nossas vidas em sacrifício por Ele! Não te entristeças por ter perdido teu pai, meu filho. Voltaremos a nos encontrar um dia, pois nós, cristãos, temos uma alma imortal, e um dia seremos ressuscitados e viveremos eternamente próximos ao Trono de Deus.”
Quando cresceu, Jorge foi para Nicomédia na Bitínia, onde ingressou na Guarda Pretoriana, e lá permaneceu até ser promovido à posição de tribuno, liderando diversas centúrias. Sua luta contra o mal — tanto material como espiritual — permitiu que ele fosse representado na iconografia como vencendo o dragão. Em um de seus feitos, havia uma grande e terrível serpente que comia todo ser vivo que visse pela frente, e passou a habitar a única fonte de água de um vilarejo. Sozinho e sem ter recebido ordens, o cavaleiro foi até a serpente e partiu-a no meio assim que ela pulou para engoli-lo, salvando todo o vilarejo da sede. Aos 22 anos de idade, cheio de honras e medalhas, Jorge foi feito conde.
Certa vez, quando voltava de uma campanha, chegou a Nicomédia e ficou sabendo de antemão sobre uma reunião que Diocleciano estava tendo com sessenta e nove de seus governantes em seu palácio, com o fim de iniciar a Grande Perseguição (303–313). Jorge, que sempre teve por objetivo final servir ao seu Senhor Jesus Cristo, entendeu a missão a qual agora teria de cumprir. Distribuindo aos pobres todos os espólios que suas centúrias haviam obtido naquela campanha, prontamente apresentou-se ao Senado em 10 de novembro de 296, jogando seu cinturão ao chão, proclamando sua Fé em Cristo, repreendendo a ilusão dos ídolos e negando-se a conduzir a perseguição de seus próprios irmãos.
Diocleciano amava Jorge como se fosse um irmão, e considerava que não havia nenhum soldado tão bravo e essencial como o tribuno. Mesmo sendo tentado pelas lisonjas e promessas do tirano imperador, o santo tribuno não se deixou levar pelas persuasões e rejeitou-as, preferindo as ameaças que o foram dirigidas caso negasse oferecer sacrifícios. O imperador, então, ordenou que Jorge fosse torturado. Os carrascos chicotearam-no até suas entranhas estarem visíveis, e aspergiram sal sobre elas. Escoriaram ainda o seu corpo com pelos ásperos até que seu sangue começasse a jorrar como água. Em todos esses sofrimentos, o confessor suportou-os pacientemente. Naquela noite, o Senhor apareceu perante Jorge no cárcere e disse:
- “Sê forte e anima-te, Meu amado Jorge, pois eis que fortalecer-te-ei para suportar a todos esses sofrimentos. Juro, por Mim mesmo e por todos os Meus anjos, que dentre os nascidos das mulheres ninguém se manifestou maior que João, o Batista, e que depois de ti ninguém manifestar-se-á semelhante a ti. Porque eis que te constituí senhor sobre os setenta homens que consentiram em iniciar a perseguição do Meu povo, e tudo o que lhes disseres lhes acontecerá. Três vezes morrerás e Eu te ressuscitarei, mas, após a quarta, Eu mesmo virei sobre uma nuvem e te levarei ao lugar seguro que preparei para a tua santa morada. Sê forte e não temas, porque Eu estou contigo.”
A mãe e o mago
Na manhã seguinte, São Jorge foi novamente trazido perante o tribunal. Durante todo o tempo, as pessoas ouviam-no cantar o salmo: “Apressa-Te em meu auxílio, Senhor, minha salvação!” Diocleciano, vendo que o santo ainda não havia abandonado a Cristo, ordenou que fosse novamente chicoteado nas costas e na frente, e trancou-o na prisão até que seus ferimentos fossem curados. Em seu cárcere, sua mãe visitava-o para encorajá-lo e lembrá-lo do Paraíso. Ela jejuava e orava incessantemente pelo filho, e era em suas visitas que Jorge recebia os Santos Mistérios.
Quando Diocleciano soube que uma mulher estava falando com seu soldado, interrogou-a, e ela disse: “Meu nome é Policrônia e sou cristã assim como meu filho Jorge, o qual torturas há dias. Saibas, ó imperador, que em seus sofrimentos tu estás preparando-o uma coroa eterna no Céu e um lugar invejável próximo ao Trono de Deus.” Ao ouvir isso, Diocleciano indagou: “Foste tu então que o ensinaste a não respeitar nossos gloriosos deuses imortais? Aconselhaste-o a não sacrificar a eles?” Corajosamente, a viúva respondeu: “Que tu saibas que nascemos cristãos, e nossos pais ensinaram-nos a Fé em Cristo, nosso Deus, único verdadeiro e todo-poderoso. Ele nunca nos negou nada do que pedimos, e é por isso que nunca negaremos a Ele. Suportaremos pacientemente uma miríade de torturas por Sua Graça.”
Em fúria, o imperador ordenou que Policrônia fosse deitada ao chão e chicoteada até derramar seu sangue. Como permaneceu firme em sua confissão, amarram-na a uma estaca e feriram-na até sua carne com garras de ferro. Depois, queimaram seus ferimentos com fogo. Após ser jogada na prisão, Santa Policrônia rendeu seu espírito e foi coroada ao lado de seu esposo nos Céus. Naquela noite, os cristãos puderam levar suas relíquias a Lida e enterrá-la.
Dias depois, Diocleciano anunciou que estava em busca de um feiticeiro para que desse um fim ao “feitiço” do tribuno. Levou pouco tempo até que viesse um mago de nome Atanásio, que não só jurou poder derrotar qualquer cristão como demonstrou seus poderes, fazendo com que um boi fosse partido ao meio sem intervenção humana alguma. Acreditando que Atanásio era o homem certo para resgatar Jorge para si, Diocleciano tornou a trazê-lo perante o tribunal, dizendo: “Ó Jorge, é por tua causa que invoquei este homem. Tu deves vencer sua magia, ou ele vencerá a tua; tu deves matá-lo, ou ele te matará.” São Jorge olhou para o mago e pediu: “Apressa-te, meu irmão, faze-me depressa o que queres fazer, pois vejo a Graça aproximar-se de ti.”
Então, Atanásio tomou um cálice com água, invocou os nomes dos demônios sobre ele e deu-lhe para beber. Tendo bebido, nenhum mal aconteceu ao santo. O mago, atônito, disse: “Meu senhor, deixa-me dar-te somente mais uma vez, e se nenhum mal te suceder, acreditarei naquele a quem crucificaram!” Tendo repetido o feitiço, São Jorge tornou a beber do cálice e nada lhe aconteceu. Atanásio não pôde conter-se: “Ó Jorge, tu tens a Cruz de Jesus Cristo, Filho de Deus, que veio ao mundo para salvar os pecadores! Tem misericórdia da minha alma e dá-me o Selo de Cristo!” Vendo tudo aquilo, Diocleciano enfureceu-se e ordenou que aquele homem fosse morto pela espada fora da cidade. Foi em seu próprio sangue que Santo Atanásio foi batizado, e foi o primeiro a ser martirizado através dos milagres de São Jorge.
A roda e o Cristo
Na manhã seguinte, Diocleciano ordenou que o confessor fosse amarrado a uma roda, cuja base possuía facas e outras pontas cortantes. Imediatamente, Jorge fraquejou-se: “De certo, nunca poderei sair vivo deste instrumento.” Mas, voltando-se a si, disse: “Ai de ti, ó Jorge, por que permitiste que esse pensamento adentrasse teu coração? Considera a sorte que te abraçou, lembra-te de que os judeus crucificaram seu próprio Senhor!” Em seguida, levantou os olhos aos Céus e disse:
- “Ó Senhor, Deus imutável, Governante eterno, a Quem pertence a Vitória, Tu que concedes a Graça aos mártires, cuja Coroa e Glória és Tu, Tu que antes de teres criado coisa alguma, sim, antes de teres criado os céus e a terra, descansaste sobre as águas, e agora descansas sobre toda a raça do homem e conheces esse Teu lugar de repouso, Tu que estendeste os céus como uma câmara e a cuja ordem as nuvens derramam chuvas na estação propícia, Tu que fazes chover sobre os justos e os injustos, Tu que pesaste as montanhas numa balança e as colinas num par de pesos, Tu que assopras o vento para longe dos armazéns, Tu que lançaste os anjos rebelosos ao abismo do inferno, onde são castigados pelos dragões e ligados com laços indesatáveis; ó Senhor Deus, que nos últimos dias desejaste enviar ao mundo Teu Filho unigênito, que Se encarnou na Virgem Maria e se fez homem, sem que homem algum pudesse compreendê-Lo, o Senhor Jesus Cristo, verdadeiramente nascido de Ti, que andou sobre a face do mar como em terra seca, que alimentou com cinco pães cinco mil homens até que se fartassem, que repreendeu as ondas do mar até que suas cristas se abaixassem; vem agora, ó meu Senhor, vem, ó Jesus, e socorre minha enfermidade, pois sou pecador. Sejam leves sobre mim estes sofrimentos, porque Tua é a Glória, e Teu Nome é cheio de Glória para sempre. Amém.”
Assim que terminou sua oração, os carrascos jogaram-no sobre a roda e giraram-na. Os profundos cortes abriram seu estômago, seus órgãos e intestinos caíram ao chão e todo o piso foi banhado por seu sangue. Perante o morto, Diocleciano levantou a voz e perguntou aos que lá estavam: “Onde está agora o deus de Jorge a quem chamam Jesus, aquele que os judeus crucificaram e mataram? Por que não veio ele para libertá-lo de minhas mãos?” Sob as ordens do imperador, os soldados reuniram seus restos mortais e os jogaram num poço fora da cidade.
Naquela tarde, um terremoto atingiu Nicomédia, o céu encobriu-se e as ondas do golfo ultrapassaram os cinco metros de altura. Alguns dos que estavam na cidade podiam ouvir trombetas, e uma carruagem corria sobre a névoa. Era Cristo em seu carro de querubins acompanhado do Arcanjo Miguel. Ele ordenou: “Desce ao poço e ajunta os restos de Meu filho Jorge, pois esse valente cultivador pensou em seu coração que não escaparia deste instrumento, no qual Eu o permiti cair para que creia de todo o seu coração e saiba que só Eu o posso libertar.”
O arcanjo desceu ao poço e ajuntou-lhe todas as partes, até que nem um só arranhão pudesse ser visto. O Senhor pegou-lhe na mão, levantou-o do poço e disse: “Ó Meu amado Jorge, eis que a Mão que formou Adão, o primeiro homem, está agora prestes a criar-te de novo.” O Senhor soprou sobre o seu rosto, e tornou a enchê-lo de vida. Abraçando-o, subiu aos Céus com o arcanjo e com os querubins. São Jorge levantou-se apressadamente, e correu de volta à cidade a procura de Diocleciano e seus servos.
Os tribunos e a serra
Era noite, e o imperador e seus servos estavam a jantar. Encontrando-os, gritou: “Sabeis quem vos fala? Sou eu, Jorge, a quem matastes ontem porque desprezastes o meu Deus que podia destruir-vos num instante!” Diocleciano não creditou-o, e disse a todos que era um impostor disfarçado, mas os santos tribunos Anatólio e Protoleão, que o conheciam há anos, exclamaram: “Em verdade, este é Jorge, ele ressuscitou dos mortos!” Todos concordaram, e mais de três mil soldados e cidadãos que conheciam Jorge, dos quais sabemos o nome de Vitor, Zótico, Zenão, Acindino e Severiano, passaram a crer em Cristo. No dia seguinte, todos foram levados à prisão.
Não se importando se aquele era ou não o tribuno ressuscitado, Diocleciano levou-o novamente em julgamento, e ordenou que ele fosse deitado e amarrado numa placa de ferro. Então, os carrascos queimaram seu corpo e boca com chumbo derretido, e lançaram uma enorme pedra ao alto, que quebrou os ossos do confessor ao atingi-lo. Em seguida, penduraram-no de cabeça para baixo, ataram-no uma pedra pesada ao pescoço e acenderam uma grande fogueira debaixo dele. O mártir suportou a essas e outras torturas em silêncio. Novamente lançado à prisão, São Jorge possuía cada vez mais uma aparência angelical, e naquela mesma noite foi visitado pelo Senhor que, curando-o, disse:
- “Sê paciente, ó Meu escolhido Jorge, tem bom ânimo e não te desanimes, pois Eu estou contigo. Haverá grande alegria nos Céus por tua causa e por causa de tua vitória. Eis que já morreste uma vez e Eu te ressuscitei; ainda hás de morrer mais duas, e Eu te ressuscitarei. Mas, após a quarta, Eu mesmo virei sobre as nuvens e te levarei ao lugar seguro que preparei para ti. Sou Eu que dou forças ao teu santo corpo, e Eu que te farei repousar com Abraão, Isaque e Jacó. Não entristeças teu coração, pois Eu estou contigo. Teu martírio será consumado diante desses setenta homens, e de Mim testificarás diante deles. Durante sete anos serás torturado por amor de Mim, mas anima-te, não entristeças teu coração.”
Saudando-o, o Senhor subiu aos Céus com os seus anjos, e o valente mártir por Cristo olhou para o céu até o amanhecer. Então, regozijou-se com o encorajamento que o Senhor havia lhe dado. Ainda de manhã, São Jorge foi novamente levado em julgamento. Maximiano (285–305), que reinava no Ocidente, estava com Diocleciano, e disse: “Ó Jorge, mostra-me um sinal. Se o fizeres, juro por todos os deuses que crerei e adorarei somente o teu deus. Eis aqui setenta tronos, um para cada um de nós, todos feitos de diversos tipos de madeira, uns frutíferos, outros não. Se tua oração fizer brotarem frutos nas frutíferas e flores nas infrutíferas, crerei em teu deus.”
São Jorge atirou-se com o rosto ao chão, e orou silenciosamente a Deus por um longo tempo. Assim que concluiu sua oração com um “Amém”, um grande tremor sacudiu o chão, e o Espírito de Deus fez brotar frutos nas pernas dos tronos feitos de árvores frutíferas e flores nas dos feitos de árvores infrutíferas. Maximiano estupeficou-se: “Grande és tu, ó Hércules, que assim manifesta teu poder em madeira seca!” Jorge replicou corajosamente: “Comparas esse ídolo cego e mudo com o Deus que criou os Céus e a terra, que fez existir o que nunca existiu e que pode destruir tu e teu ídolo num mesmo instante?” E Diocleciano finalizou: “Ó galileu, pois eu sei como hei de te destruir.” São Jorge foi serrado ao meio, e assim morreu pela segunda vez.
Querendo não cometer seu “erro” novamente, Diocleciano ordenou que as duas partes do seu corpo fossem jogadas num caldeirão e fervidas com chumbo, piche e gordura até que as chamas atingissem sete metros de altura. Então, ordenou que seus carrascos fossem para longe enterrar o caldeirão com seu corpo carbonizado, para que o santo não pudesse voltar.
Depois de um tempo, um novo terremoto atingiu Nicomédia, e novamente o Senhor desceu com Sua gloriosa carruagem de querubins até o lugar onde o caldeirão havia sido enterrado, acompanhado pelo Arcanjo Salatiel. Sob Suas ordens, Salatiel ergueu o caldeirão debaixo da terra e trouxe-o à superfície. O Todo-Poderoso disse: “Ó Jorge, Meu escolhido, levanta-te! Porque Eu ressuscitei Lázaro dentre os mortos, e agora ordeno-te que te levantes e saias do caldeirão. Eu sou o Senhor, teu Deus.” Saindo completamente são do caldeirão, Jorge adorou a Deus e foi saudado: “Sê forte e anima-te, Meu amado Jorge, pois haverá grande alegria para ti nos Céus e na terra, diante de Meu Bom Pai e diante dos Meus anjos por causa de tua vitória. Sê forte, porque Eu estou contigo.” E ascendeu novamente aos Céus com Sua carruagem. Dessa vez, algumas pessoas viram ao longe o milagre, e maravilharam-se com aquilo.
O fazendeiro e o jazigo
O valente mártir tornou a voltar para a cidade, e ainda mais testemunhas de seu segundo martírio viam-no e passavam a crer em Jesus Cristo. De repente, uma mulher de nome Escolástica gritou a São Jorge: “Ó meu senhor, meu filho estava a pôr o jugo em nosso boi quando esse caiu e morreu! Ó meu senhor, ajuda a minha pobreza, sei que tu podes ajudar-me através de Deus!” O tribuno deu-lhe o cajado que estava em suas mãos e pediu que ela recitasse essas palavras quando chegasse ao boi: “Assim diz Jorge em nome de Jesus Cristo: levanta-te!” A mulher fez como ele havia dito, e o sopro da vida adentrou o animal, que ergueu-se perante toda a multidão que a havia acompanhado. A mulher, o fazendeiro Glicério e toda a multidão glorificaram a Deus, dizendo: “Bem-aventurada a hora em que entraste nesta cidade! Tu és em verdade um profeta, e Deus visitou o Seu povo!” Em seguida, todos foram presos.
São Jorge foi com eles, e após passar alguns meses no cárcere, voltou a ser interrogado. Os interrogadores desafiaram-no: “Há aqui perto alguns túmulos de centenas de anos. Juramos por todos os nossos deuses que creremos no teu deus e tornar-nos-emos como ti se tuas orações fizerem esses ossos tornarem à vida.” De fato, nem mais ossos haviam lá dentro, mas somente o pó deles. Ao lado do sepulcro, o tribuno orou durante o espaço de uma hora. Assim que finalizou sua oração com um “Amém”, a terra tremeu, e alguns clarões começaram a aparecer de dentro do sepulcro (assim como durante a cerimônia do Fogo Santo no Santo Sepulcro).
Assim que notaram algo acontecendo dentro do jazigo, as pessoas que lá estavam reabriram sua porta, e eis que cinco homens, nove mulheres e três crianças saíram de lá, caindo aos pés do santo. Os que assistiam ao milagre perguntaram espantados a um dos homens quem ele era, e o ressuscitado, venerando São Jorge, os respondeu que havia vivido antes da vinda de Cristo, e sua ilusão que o levou a adorar os ídolos havia-o feito queimar sem misericórdia nos rios do inferno por todos esses anos, até seu espírito ter sido reunido ao corpo através das orações de São Jorge.
O ressuscitado ainda disse: “O Juiz virá e dirá: ‘Mostrai-Me vossas obras e vos darei vosso salário.’ Ouvi-me todos! Todo homem que confessar Aquele a quem crucificaram, mesmo que parta do mundo em pecado e viva em grilhões até o Dia do Senhor, alcançará o repouso após esse dia, pois o Senhor não Se esquecerá dos castigados. Quanto a mim, não terei descanso algum, pois não confessei Sua Divindade enquanto vivia na terra…”
Os dezessete encurvavam-se perante o mártir, implorando que ele os recebesse no Santo Batismo, para que não voltassem a cair no castigo em que estavam. Vendo sua fé, São Jorge feriu a terra com seu pé, e uma pequena poça d’água se formou. Após batizá-los em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, os dezessete afastaram-se para onde ninguém os pudesse ver, e foram arrebatados aos Céus. A maioria dos que viram esse milagre, incluindo os interrogadores Cesário, Cristóvão, Teonas e Antonino renunciaram o paganismo e aderiram a Cristo. Posteriormente, todos acabaram sendo martirizados pela Fé. Diocleciano soube do ocorrido, mas foi amenizado pelos governantes, que diziam que Jorge usava de magia para fazer os demônios se levantarem e dizerem que haviam sido ressuscitados, e novamente o tribuno foi enviado ao cárcere por vários meses.
A viúva e o menino
O imperador, certo dia, em sua ignorância sobre o Evangelho, quis “humilhar” os cristãos levando São Jorge a uma pobre viúva, cuja pobreza não se achava em nenhum outro lugar da cidade. Ele, já sabendo o que havia de acontecer, disse: “Tenho fome. Dá-me pão.” A pobre viúva sequer possuía pão em sua casa, e ele perguntou: “Em que deus crês, que não tens pão em casa?” E ela: “Creio em Apolo e Héracles, os deuses que regem esse império!” E São Jorge finalizou: “De fato, é do justo Juízo de Deus que tu não tenhas pão em tua casa.”
Quando olhou indignada para cima, a viúva viu seu rosto, e ele brilhava como um anjo. Ela maravilhou-se e disse consigo: “Se eu implorar por pão aos meus vizinhos, porventura encontre favor aos olhos deles, visto que esse homem de Deus entrou em minha casa!” Assim que a viúva partiu, um tronco de lenha criou raízes no chão e uma grande árvore cresceu ao lado da casa, e sua altura ultrapassava o telhado. O Arcanjo Miguel desceu dos Céus com um enorme banquete, que saciou o mártir e ainda encheu a mesa da viúva de pão. Quando ela retornou à casa e viu as grandes maravilhas que haviam acontecido, ela jogou-se aos pés do santo e exclamou: “O Deus dos cristãos se lembrou da pobreza dessa viúva e trouxe Seu mártir para ajudá-la, a miserável em espírito!” São Jorge, em sua humildade, fê-la ficar de pé, pois dizia-se apenas um servo de Deus, sofredor por causa de Seu santo Nome.
A viúva ansiava por mais uma coisa: “Mestre, se encontrei favor diante de ti, permite-me que eu me atreva a pedir por algo mais! Tenho aqui um menino, ele é cego, surdo, mudo e coxo… Ele é motivo de vergonha até para os meus vizinhos, e tem de se esconder no terceiro andar! Se curá-lo, crerei em teu Deus!” São Jorge pediu que a criança fosse trazida a ele, e deitou-a em seu peito. Inclinando a cabeça sobre a criança, o santo soprou, e imediatamente seus olhos puderam se abrir. E disse: “Ó mulher, isso agora é suficiente, mas quando vier o tempo de teu filho vir me servir, eu o chamarei e ele ouvirá, e ele virá até mim.” A viúva não tinha sequer palavras para respondê-lo, pois seu rosto brilhava cada vez mais como um anjo.
Quando o imperador soube do ocorrido e do número de testemunhas que haviam visto aquele milagre, levou o mártir para ser açoitado em praça pública. Os carrascos açoitaram-no até que ele não resistisse mais e caísse desfalecido no chão. Então, fizeram uma fogueira e jogaram-no sobre as lenhas. Para finalizar, conseguiram pendurar seu corpo acima das chamas, e foi assim que o grande mártir entregou sua alma pela terceira vez.
Seu corpo foi levado até o alto de uma montanha para que os pássaros viessem comê-lo. Quando já haviam ido embora, uma tempestade de trovões fez toda a montanha tremer, e do meio dos relâmpagos desceu o Senhor, curando-o e dizendo: “Ó excelente escolhido, levanta-te de onde estás.” São Jorge voltou à vida, e pôs-se a correr em direção dos quatro que haviam levado seu corpo ao monte, que já estavam há alguns quilômetros dali. Quando os encontrou, gritou: “Esperai por mim!” Ao reconhecerem o mártir, caíram aos seus pés, glorificaram a Deus e imploraram pelo Santo Batismo. Mais uma vez, São Jorge realizou o batismo, e eles correram ao imperador, brandando que agora criam em Cristo. Um foi crucificado, dois foram decapitados e o outro foi lançado aos animais selvagens; assim receberam a coroa do martírio.
A imperatriz e o oráculo
No início de 303, Diocleciano desceu à Cária para consultar Apolo. Diocleciano estava sendo pressionado pelo também Imperador Galério (293–311) a decretar o extermínio dos cristãos, mas necessitava dos conselhos de seu deus. O oráculo respondeu que os ímpios haviam impedido a capacidade de Apolo de dar conselhos, e o imperador entendeu de que “ímpios” o oráculo falava. Assim, em 24 de fevereiro de 303, Diocleciano, Maximiano, Galério e Constâncio deram início à Grande Perseguição.
Tendo passado vários meses no cárcere, São Jorge foi novamente convocado ao tribunal por Diocleciano. Até então, já haviam se passado sete anos desde o começo de suas torturas, e todos esses meses no cárcere serviram para que o mártir estabelecesse uma plena comunhão com Deus, orando incessantemente e recebendo cada vez mais da Sabedoria de Deus. Diocleciano fez um último apelo, incluindo prometê-lo o cargo de Maximiano caso o fizesse: “Ó Jorge, juro pelo sol, pela lua e por todos os deuses que benevolentemente tratar-te-ei como meu filho amado, e dar-te-ei tudo o que pedires; só me toma por pai e adora os deuses comigo.”
São Jorge, conhecendo a astúcia do imperador, disse: “Tuas palavras são admiráveis, e me fazem perguntar — tenho estado sob teu poder até hoje, por que não as disseste antes? Eis que durante sete anos me torturaste e três vezes me mataste, e mesmo assim nunca ouvi tais palavras. Não sabes tu, ó imperador, que a raça dos cristãos ama a vitória e luta contra aqueles que a rejeitam? Agora me alegro de poder agradar a tua força, e oferecerei sacrifício ao teu grande deus Apolo, a quem tu amas.”
Diocleciano não podia mais conter-se, e pôs-se a beijar a cabeça de São Jorge. Ele resistiu, dizendo que não era costume saudar-se antes de adorar os deuses, e pediu que pudesse voltar à prisão até o dia seguinte. Diocleciano respondeu-o: “Longe de mim punir-te daqui em diante! Perdoa-me por todos os sofrimentos que te infligi, pois te os causei em ignorância. Aceita-me como teu pai, e te levarei ao meu palácio, onde a imperatriz descansa em seu quarto.” Levando-o ao quarto, Diocleciano deixou-os a só e foi dormir, pois já era noite.
De joelhos, o santo começou a orar, dizendo: “Ó Senhor, meu Senhor, não há deus algum semelhante a Ti, e Tu és o Deus que fazes maravilhas. Por que esse povo inventa para si coisas vãs e clamam a elas? Todos esses setenta homens reuniram-se contra Deus e contra o Seu Cristo…” Alexandra, Imperatriz de Roma (284–303), ouvia atentamente a oração e interrompeu-o: “Ó Jorge, meu amo, ouço-te com atenção e gosto das tuas palavras… Quem são estes que clamam? Quem são estes que imaginam coisas vãs e quem é Cristo? Ensina-me para que eu possa conhecê-lo!”
- “Se tu desejas conhecer a Cristo e Sua Palavra, ó Imperatriz Alexandra, ouve-me. Quando Deus criou os Céus e a terra, Ele tomou um torrão de terra e fez um homem em Sua semelhança, e da terra fê-lo ter carne. Em seguida, criou seus músculos, sua pele e todo o resto: olhos, língua, garganta, mãos… Nosso Senhor Jesus Cristo tomou sobre Si a carne da santíssima Virgem Maria e Se fez homem. Ele é o Deus que me ressuscitou dentre os mortos, e foi pelo Santo Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo que eu suportei esses sofrimentos. Por amor de Adão, ó imperatriz, Deus fez os céus e criou o sol, a lua, as estrelas e todo o resto. Os idólatras que hoje estão no mundo adoram coisas abomináveis a Deus, pois servem ídolos sem alma e formados pelas mãos do homem. Assim, eles acabam desprezando a Deus, o criador do universo.” — “Então são esses deuses demônios? Como é que o Filho de Deus veio ao mundo?” — “Sim, eles são demônios. O Profeta Davi dizia coisas como ‘Tu que estás sentado sobre os querubins, aparece, mostra a Tua Força e vem em nosso auxílio’ e ‘Ele descerá como a chuva sobre a relva’, ou seja, sobre a bendita Virgem Maria. O Profeta Habacuque clamava, dizendo ‘Senhor, ouvi a Tua mensagem e enchi-me de temor diante de Tua obra’, pois sabia que o Cristo viria a esse mundo, e O temia. Ele sabia que era Deus quem Se tornaria homem, para que a salvação fosse nossa e para que Ele nos livrasse das mãos do diabo, o inimigo de toda a verdade, que desvia esses setenta homens.”
A imperatriz foi vencida pelo discurso do santo, e disse: “Em verdade falas bem, e convenceste-me de que Cristo é o Deus do universo. Agora peço-te que ores por mim, para que todos os artifícios e artimanhas dos demônios e dos ídolos possam fugir imediatamente de mim!” São Jorge explicou que nenhum demônio poderia se aproximar dela se cresse em Jesus Cristo, mas ela resistia: “Ó Jorge, meu mestre, eu creio, mas tenho medo de meu esposo, que devora inocentes como um animal selvagem… Mantém esse assunto em segredo, não contes a ninguém até que minha coroa, a coroa do martírio, seja posta sobre minha cabeça no Reino de Cristo!” Nisso, a piedosa imperatriz pôs-se a dormir.
Os ídolos e o demônio
No dia seguinte, por todas as ruas de Nicomédia era anunciado que o tribuno iria prestar culto a Apolo, e uma grande multidão foi ao templo para ver com seus próprios olhos o anunciado. A piedosa viúva estava entre a multidão e disse a São Jorge: “Ó tu que ressuscitaste os mortos, que deste a visão aos cegos, que deste carne aos que já haviam voltado ao pó, que fizeste a madeira dar frutos, que fizeste a lenha criar raízes e se tornar uma grande árvore, que fizeste minha mesa encher-se de pão, que manifestaste multidões de milagres e envergonhaste o diabo, adorarás Apolo agora, envergonhando toda a raça dos cristãos?” São Jorge sorriu e pediu que pusesse seu filho ao chão, e ela assim o fez. Ele ainda comandou: “Em nome de meu Senhor Jesus Cristo, vem e sê meu servo.”
O menino imediatamente ouviu, pôs-se de pé e correu até o santo. Sob suas ordens, o menino entrou no templo e disse ao ídolo: “Jorge, o servo de Cristo, está a te chamar.” O espírito saltou do ídolo e veio ao encontro de São Jorge, murmurando: “Ó nazareno, tu atrais cada um a ti, e enviaste este menino para me envergonhar. Tem um pouco de paciência comigo, e eu te direi tudo antes que me perguntes. Tu sabes que Deus criou um Paraíso, e lá fez o homem em Sua semelhança. Deus ordenou que os anjos o servissem, e assim Miguel e todo o seu exército o fez. Eu, porém, contestei Sua ordem e perguntei como poderia eu, excelente que era, servir aquele que é inferior a mim. Deus se indignou muito, e expulsou-me da glória que me cercava, lançando-me do céu como uma águia em direção a uma rocha. Eu estava em grilhões, e agora vivo no ídolo conduzindo os filhos dos homens. Quando subo ao Firmamento e ouço a sentença de que um homem morrerá e sairá deste mundo, vou ter com ele e lhe inflijo sofrimentos até que ele blasfeme contra Deus.”
O santo repreendeu-o, dizendo: “Tu não disseste a verdade, ó criador de mentiras. Foste lançado do Firmamento por causa do teu orgulho em teres preparado um trono para te sentares e por tentar fazer-se igual a Ele que é mais exaltado que tu. Ele expulsou-te dos Céus com todos os teus exércitos para as profundezas do mar. Desce agora, ó espírito imundo, ao abismo, e anuncia às almas que destruíste.” Ferindo a terra com o pé, um buraco se abriu e o espírito desceu ao abismo juntamente com o ídolo de Apolo. Ferindo-a novamente, o buraco se fechou. Depois disso, São Jorge soltou os fechos dos calçados, foi ao ídolo de Héracles e derrubou-o ao chão, só restando cacos. Todos os ídolos do templo começaram a estremecer, e caíram ao chão em pedaços. Com isso, ainda mais pagãos declamavam Cristo como Deus. “Descei ao abismo, ó deuses dos pagãos, porque contra vós vim com ira.”
Entretanto, os sacerdotes pagãos foram tomados pela ira, cercaram-no e o levaram com as mãos amarradas a Diocleciano, que havia ficado com os outros homens a uma distância do templo por causa da grande multidão. Quando soube o que havia acontecido com os ídolos, encheu-se de fúria e disse: “Ó tu, digno da destruição, não havias me dito que adorarias os meus deuses? Dizias atirar-lhes incenso e ainda assim usas tua magia! Não sabes tu que tua vida está em minhas mãos?” Jorge insistiu que trouxesse-lhe outro ídolo de Apolo, e ele adorá-lo-ia na frente do imperador.
Diocleciano desconfiou, e disse: “Acabaram de me dizer que ele desceu ao abismo, e agora queres mandar-me vivo para lá também!” O tribuno, entretanto, desafiou-o: “Se Apolo era tamanho deus que confiaste até em teus dias de infortúnio, como então foi ele incapaz de se ajudar, sendo o primeiro dos ídolos a cair no abismo? Quando Deus vier para julgar os Céus e a terra, o que farás tu e esse a quem confias?” Com isso, São Jorge foi novamente mandado para sofrer na prisão.
O martírio e a oração
De volta ao palácio, o imperador confessou-se com Santa Alexandra pela destruição do grande ídolo de Apolo: “Sofro muito por causa da raça dos cristãos, e especialmente por esse galileu.” A imperatriz censurou-o: “Quantas vezes já disse que deixes os cristãos em paz? Pois o seu Deus é o verdadeiro, e Ele há de humilhar-te por teu orgulho!” Diocleciano não podia acreditar — até sua própria esposa estava sob o “feitiço” dos cristãos. Chorando “Ai de mim, Alexandra”, levou-a pelos cabelos até os outros sessenta e nove homens, contando o que havia acontecido. Eles foram unânimes: ela não poderia mais viver.
Depois de presa, Santa Alexandra foi sentenciada à lenta morte por hemorragia. Ela não relutou, e foi torturada em silêncio, olhando para o céu. Depois de um tempo, ela olhou para Jorge e disse, em dor: “Ora por mim enquanto sofro a tortura…” O santo consolou-a, e disse: “Aguenta só mais um pouco, ó minha rainha, e receberás tua coroa das mãos de nosso Senhor Jesus Cristo.” Depois de mais um tempo, tendo já banhado todo o chão com seu sangue, ela soltou um grito: “Ó meu Senhor Jesus Cristo, eis que mantive a porta de meu palácio aberta para Ti e não a fechei… Senhor, não feches contra mim a porta do Teu Paraíso!” A essas palavras, a santa Imperatriz Alexandra entregou sua alma, e recebeu a coroa incorruptível de Cristo na manhã de 21 de abril de 303, juntamente com Isaque, Apolo e Quadrado, seus servos que também creram no Deus de Jorge.
Dois dias após o ocorrido, São Jorge foi novamente condenado à morte, desta vez pela espada. Sabendo que essa seria a última vez que morreria, o corajoso mártir dirigiu-se por conta própria ao lugar onde seria decapitado. Teve ainda tempo de dizer aos soldados: “Irmãos, tende um pouco de paciência para que eu faça uma última oração.”
- “Ó meu Senhor Jesus Cristo, vejo aqui uma multidão que deseja levar meu corpo, mas meu corpo não será suficiente para o mundo inteiro. Rogo-Te que me concedas um favor, que o meu nome cure a todos os infligidos por espíritos impuros que a mim recorrerem. Ó Senhor, meu Deus, que todo aquele que estiver amedrontado quando chegar seu juízo possa sair em paz se recorrer ao meu nome. Escreve no Livro da Vida todo o nome que escrever sobre meu martírio e os sofrimentos pelos quais padeci. Se os céus negarem chuva à terra e os homens recorrerem a Ti através de mim, rogo que conceda-lhes a chuva. Ó Deus da verdade, por causa de cujo Nome sofri minhas dores, lembra-Te de todos os que, em meu nome, mostrarem a bondade aos pobres, e perdoa-lhes os pecados cometidos.”
Terminada sua oração, eis que viu o Senhor diante de si, dizendo: “Sobe agora ao Céu, e descansa na morada que te preparei no Reino do Pai. Ó excelente Jorge, cumprirei tudo o que pediste, e coisas maiores do que essas também.” Chamando os soldados, o grande mártir estendeu seu pescoço. Assim que o decapitaram, água e leite saíram junto de seu sangue. Um novo terremoto atingiu a cidade, e trovões e relâmpagos pairaram pelo ar. Assim, em 23 de abril de 303, Jorge, o grande e vitorioso mártir por Cristo, entrou para a vida eterna junto de seu Criador e Salvador, intercedendo incansavelmente a Deus pela segurança das nações e pela salvação de toda a humanidade, até o fim do mundo.
Nos dias seguintes ao seu martírio, aqueles que haviam sido presos por crerem em Deus através de seus milagres foram anunciados que receberiam a anistia caso oferecessem sacrifícios aos ídolos. Dos que não traíram a Cristo, conhecemos o nome dos santos Eusébio, Neão, Leôncio, Longino, Danabo, Demétrio, Nestabo e Cristóvão, os quais foram dilacerados no dia seguinte ao martírio, e de Santa Vitória, decapitada em 25 de abril.
Pós-vida
Pasícrates, um de seus fiéis servos, encarregou-se de levar as relíquias de São Jorge de Nicomédia a Lida. Lá elas ficaram enterradas até o triunfo da Ortodoxia no reino do santo Imperador Constantino, o Grande (306–337), quando a Igreja de São Jorge foi construída, também em Lida. A conclusão dessa igreja deu-se num 3 de novembro, e até hoje esse dia é comemorado pela transladação de suas relíquias. (ver panorâmica)
Santa Nina da Geórgia era parenta de São Jorge, e trouxe sua veneração à Geórgia ainda no século IV. Por conta disso, a maior parte das igrejas georgianas são dedicadas ao santo, que também é considerado como o protetor da nação. Durante as Cruzadas, as relíquias de Santa Policrônia foram pilhadas pelos latinos e ou vendidas ou levadas ao Ocidente. A mão destra de São Jorge está no Mosteiro de Xenofonte, na Montanha Santa.
No tempo do Imperador Anastácio I de Roma (491–518), um santuário foi construído para abrigar suas relíquias em Zorava, no sul da Síria. Essa catedral existe até a atualidade, e é uma das mais antigas da Síria. (ver panorâmica)
Já no outro lado do império, São Gregório, Bispo de Turono (573–594), já relatava a presença das relíquias do santo na Gália e a operação de milagres nos enfermos que as veneravam. Atualmente, é possível que elas estejam espalhadas por toda a França, especialmente em Cenomano, onde elas ficavam nos tempos de São Gregório.
Em 614, durante o Cerco de Jerusalém, uma força divina impediu que os soldados sassânidas pudessem adentrar a Igreja de São Jorge, e o próprio cavalo do comandante recusou-se dar um passo adiante. O comandante entendeu que, como havia conseguido invadir toda a fortificada cidade de Lida menos uma igreja centenária, Deus o havia permitido aquela invasão. O persa fez uma promessa caso Deus o permitisse retornar da guerra vivo e, na vitória persa, ordenou que a igreja fosse ornamentada da melhor maneira possível.
Certa vez, Santo Adomnano, Abade da Escócia (679–704), recebeu um peregrino que havia visitado a Terra Santa, e registrou sobre a existência da coluna milagrosa na qual São Jorge havia sido flagelado na igreja em Lida, pela qual operavam-se milagres. Outro manuscrito, escrito por um monge desconhecido de nome Epifânio no século VIII, atestou novamente a existência dessa coluna, que jorrava sangue durante três horas todo 23 de abril. Não somente a coluna, mas também a roda com lanças afiadas na base que feriu o santo também parece ter sido levada de Nicomédia a Lida, de acordo com o manuscrito.
Na era de São Zacarias, Papa de Roma (741–752), o mesmo misteriosamente encontrou o venerável crânio de São Jorge guardado a salvo numa urna (provavelmente no Oriente), com uma inscrição em grego sobre sua autenticidade. Tamanha foi sua felicidade, que o papa convocou toda a cidade de Roma numa procissão com hinos e cânticos até depositá-lo na milenar Igreja de São Jorge em Velabro, próxima ao Arco de Jano. Sua lança e seu estandarte também acabaram sendo levados para lá. Desde sua transladação à igreja, inúmeros milagres foram registrados por aqueles que veneravam o grande mártir. (ver panorâmica)
No Chipre, durante o período otomano que perdurou dos séculos XVI a XIX, as autoridades, por algum motivo, não barravam a construção de templos em honra a São Jorge. Por conta disso, mais de trezentas igrejas, mosteiros e capelas foram construídas em honra ao santo, além de nove vilas e duas ilhas. Muitos cipriotas são nomeados Jorge ao nascer, e o grande mártir está intrínseco à cultura nacional. Nesse lugar, São Jorge é considerado o padroeiro dos que sofrem de epilepsia e doenças na visão, das crianças que tardam a dar seus primeiros passos e das garotas que buscam por um companheiro.
Entre os povos rurais, São Jorge é o padroeiro da pecuária e da proteção contra animais selvagens. Em alguns lugares da Grécia, o 23 de abril é marcado por procissões a cavalo ou ordenhação de ovelhas, quando os fazendeiros trazem todas as suas ovelhas à igreja local e distribuem o leite a todos os paroquianos.
Igreja de São Jorge em Constantinopla
A Igreja de São Jorge em Constantinopla é um templo milenar sobre o qual muito pouco foi preservado sobre sua história. Tamanha fora sua importância na Antiguidade ou no Medievo que sua consagração acabou sendo adicionada ao calendário da Igreja sob 24 de abril. O ano não é sabido, mas um mosteiro já existia no lugar desde a era de São Nectário, Arcebispo de Constantinopla (381–397), e certamente a igreja já havia sido consagrada nos tempos de São Cosme I, Patriarca de Constantinopla (1075–1081), quando foi usada como túmulo para a família do historiador Miguel Ataliata.
O templo também possuía o epíteto de “Ciparíssia”, pois havia um enorme cipreste plantado ao lado da igreja. Pelo curso da história, dois incêndios destruíram completamente a igreja, incluindo a árvore. No século XIX, a igreja foi reconstruída e outro cipreste foi plantado. Por conta da falta de cristãos em Samátia, bairro onde a igreja está construída, a Divina Liturgia é realizada somente uma vez por ano, pelo próprio Patriarca de Constantinopla. Em 2018, a igreja ganhou uma bela reforma das paredes externas. (ver panorâmica)
Igreja de São Jorge em Kiev
A veneração de São Jorge nas terras russas iniciou-se graças a São Jaroslau, o Sábio, Grão-Príncipe de Kiev (1019–1054), filho de São Vladimir. Em 1030, São Jaroslau, que tinha por onomástico São Jorge, concluiu a construção do Mosteiro de São Jorge em Novogárdia, atual Patrimônio da Humanidade. (ver vídeo) Em 1032, São Jaroslau consagrou a grande cidade que havia construído como Iurieve (cidade de Iuri, cujo nome é uma adaptação de Jorge). Depois da invasão lituana do século XIV, a cidade passou a ser conhecida como “Igreja Branca”, e na atualidade é uma das maiores cidades do entorno de Kiev. (ver colagem)
Duas décadas depois, em 26 de novembro de 1051, São Jaroslau consagrou a Igreja de São Jorge em Kiev, uma das maiores de todas as terras russas até então. O acontecimento foi tamanho que o santo Metropolita Hilarião de Kiev (1051–1055) adicionou esse dia ao calendário de festas da Igreja como o Dia de São Jorge no Outono, o qual é celebrado ainda hoje na Rússia (o dia 23 de abril é considerado como Dia de São Jorge na Primavera). Era nela em que se consagravam novos hierarcas para as terras russas, e também serviu de túmulo para a família real russa.
No século seguinte, o Grão-Príncipe Iuri I de Kiev (1155–1157), que tinha por onomástico São Jorge, fundou a grande cidade de Moscou, consagrada ao santo por São Constantino I, Arcebispo de Kiev (1155–1157), além de igrejas dedicadas ao santo. Até hoje, a bandeira de Moscou representa São Jorge vencendo o mal, representado pelo dragão. (ver brasão) A cidade de Iurieve-Polsco, também construída pelo grão-príncipe, abrigou a Catedral de São Jorge em Vladimir, existente até hoje. (ver panorâmica) Diferente dela, a Igreja de São Jorge em Kiev não resistiu à invasão mongol na era do Metropolita José I (1237–1240) e foi destruída.
Em 1674, quando Kiev estava sob o jugo lituano, o Metropolita José V de Kiev (1663–1675) construiu uma pequena igreja de madeira sobre as ruínas, a qual foi reconstruída como um grande templo de pedra em estilo barroco pela Imperatriz Isabel da Rússia (1741–1762) em 1752, quando Kiev já fazia parte da Rússia. Antes de sua transferência para a Lavra das Cavernas, a igreja abrigou o túmulo do Príncipe Constantino da Valáquia (1802–1807), o qual lutou pela Independência da Grécia até ser derrotado pelos otomanos. Entre os reinados de Alexandre III (1881–1894) e São Nicolau II (1894–1917), algumas partes da igreja foram reformuladas no estilo neobizantino. Em 1934, a Igreja de São Jorge foi destruída pelos militantes ateístas.
Hinos
Tropário
(Tom IV)
- Sendo libertador dos cativos, protetor dos pobres, médico dos doentes e defensor dos fiéis, ó grande mártir, vitorioso Jorge, intercede a Cristo Deus pela salvação de nossas almas.
Condáquio
(Tradução livre)
- Cultivado por Deus, tu te manifestaste como um digno lavrador, /
- colhendo para ti mesmo os feixes da virtude. /
- Pois semeaste com lágrimas mas colheste com alegria, /
- tu competiste com o teu sangue, e da disputa recebeste o Cristo. /
- Por tuas intercessões, ó Grande Mártir Jorge, /
- a todos é concedida a remissão dos pecados.
Louvor
(Por São Nicolau, Bispo de Ócrida, em tradução livre)
- Ó Jorge mártir, ó Jorge vitorioso, /
- pelo sofrimento conquistaste, /
- e pela morte foste glorificado. /
- Considerando todas as coisas /
- como inferiores à verdade, ó Jorge, /
- renunciaste o poder e a honra terrena /
- para servir ao lado do Cristo Vivo.
- Ó Jorge mártir, ó Jorge vitorioso, /
- trespassado pelas terríveis torturas, /
- foste sustentado pela Mão divina. /
- Todas as tuas dores foram como nada /
- quando Sua Mão veio em teu amparo, /
- e nós nos curvamos diante de ti /
- e glorificamos o teu santo nome.
- Ó Jorge mártir, ó Jorge vitorioso, /
- tem piedade de nós agora. /
- Por suas orações, protege-nos /
- perante o Trono de Cristo Deus, /
- nosso Salvador e todo-poderoso Criador. /
- Intercede para que não temamos a tortura, /
- e que, pela paciência, conquistemos.
Notas
- Esse mesmo servo, Pasícrates, foi quem encarregou-se de registrar sua vida para que todas as gerações futuras pudessem contemplar a Glória de Deus realizada por intermédio de São Jorge. Nesse registro, o nome de Diocleciano está grafado como Dadiano, e algumas tradições ocidentais acabaram identificando-o como o mesmo Daciano responsável pelo martírio de São Vicente de Saragoça e outros. Isso, porém não seria possível, pois Daciano era prefeito da Gália, e não de alguma outra área no Oriente. Em algumas partes desse artigo, é possível encontrar a palavra “cultivador” referindo-se ao santo. Isso ocorre pelo fato desse ser o significado do nome Jorge.
- No mesmo registro, há um Magnêncio que governava ao lado de Dadiano. É impossível que esse seja o Imperador Magnêncio de Roma (350–353), pois este usurpou do poder e governou sozinho, além de que a Igreja de São Jorge já havia sido construída décadas atrás, e Santa Nina já havia pregado na Geórgia. Logo, esse só pôde ter sido o Imperador Maximiano, que governou juntamente com Diocleciano.
Ligações externas
- Megalomártir Jorge, o Vitorioso (Arquidiocese Ortodoxa Antioquina de São Paulo e Todo o Brasil)
- Megalomártir Jorge, o Vitorioso (Arquidiocese Ortodoxa Grega da América, GOARCH)
- Megalomártir Jorge, o Vitorioso (Igreja Ortodoxa na América, OCA)
- Megalomártir Jorge, o Vitorioso (João Sanidopoulos)