Cem mil mártires de Tiblissi
Os Cem Mil Mártires de Tiblissi (séc. XIII) foram santos condenados à morte por não renunciarem a Cristo diante do Xá Jalaladim após a captura da capital da Geórgia, Tiblissi, em 1226. A Igreja, especialmente na Geórgia, relembra a memória desses gloriosos mártires nos dias 31 de outubro e 11 de dezembro, durante a Festa de Todos os Santos da Geórgia.
Vida
No século XIII, após o repouso da santa Rainha Tamara da Geórgia (1184–1213), a Era de Ouro Georgiana entrou em declínio. O reino era rodeado de todos os cantos por povos vassalos pagãos e islâmicos, e a grande devoção do povo georgiano a São Jorge era o que mantinha as terras ibéricas protegidas. Quando o filho de Santa Tamara, Jorge IV (1213–1223), assumiu o reino, frustrou algumas revoltas dos estados vassalos e planejou unir-se aos latinos, que na década anterior haviam destruído Constantinopla e saqueado e profanado suas igrejas, para combater os islâmicos na Palestina. Jorge também havia se aproximado do misticismo, e casou-se clandestinamente com uma camponesa. Por suas escolhas, a Geórgia afastou-se das bênçãos de São Jorge.
Em 1218, o Imperador Maomé II da Corásmia (atual fronteira entre o Turcomenistão e o Usbequistão; 1200–1220) assassinou três mongóis enviados pelo Imperador Gêngis da Mongólia (1206–1227) a fim de fortalecer a diplomacia entre os dois impérios. Gêngis, em contrapartida, enviou um exército de mais de cem mil homens para devastar completamente todas as cidades do império, inclusive sua capital, Gorganche. Maomé conseguiu fugir, mas morreu de inflamação logo após. A brutalidade dessa vingança resultou num dos mais sangrentos massacres da história do mundo.
Em 1220, Gêngis enviou os dois generais e vinte mil homens que estavam atrás de Maomé ao oeste do Mar Cáspio para reconhecimento. Quando chegaram a Naquichevão (atual Azerbaijão), derrotaram dez mil guerreiros georgianos e retornaram à Ásia Central. O Rei Jorge, que também feriu-se na batalha, uniu-se com alguns generais dos estados vassalos para uma futura emboscada. Os mongóis, entretanto, interceptaram o plano e, recrutando curdos e turcos, atacaram a Geórgia de surpresa no inverno de 1221, e caçaram os camponeses das fronteiras do reino. Quando chegaram a Tiblissi, o exército georgiano conseguiu derrotar os turcos, mas foi massacrado pelos mongóis na retaguarda.
Após devastarem o sul da Geórgia, os mongóis acamparam no Carabaque (região sul dos atuais Azerbaijão e Armênia) e conquistaram Tabriz (atual noroeste do Irã), mas a cidade conseguiu pagar uma fortuna para não ser aniquilada. De lá, os mongóis massacraram as populações de Hamadã, capital do Império Seljúcida, Naquichevão e outras cidades ao sudeste da Geórgia. A essa altura, o Rei Jorge já havia recrutado setenta mil guerreiros, e em setembro de 1222 partiu em direção à Pérsia, onde estavam cinco mil guerreiros mongóis. Aquilo, entretanto, era uma emboscada, e outros quinze mil surgiram para lutar contra Jorge. Os georgianos conseguiram fugir, mas Jorge veio a morrer no ano seguinte em decorrência de seus ferimentos nessa guerra, conhecida como Batalha de Cunã, e foi sepultado no Mosteiro de Gelati no oeste georgiano.
Quem sucedeu-o no reinado da Geórgia foi Rusudana, sua irmã. A rainha não possuía experiência, e as fronteiras do reino eram encurtadas pelas forças islâmicas cada vez mais. Para fortalecer o poder de guerra georgiano, em 1224, aos trinta anos de idade, Rusudana casou-se com o Príncipe Gias dos Seljúcidas de apenas dezessete anos, que obteve a raríssima permissão de se converter do islamismo ao cristianismo sob o nome de Demétrio. Rusudana também continuou com o plano de unir-se aos latinos, e durante seu reinado enviou diversas cartas a Roma.
A volta dos corásmios
A três mil quilômetros de lá, estava exilado na Índia Jalaladim (1220–1231), filho de Maomé II e herdeiro das cinzas que restaram do Império Corásmio. Jalaladim conseguiu unir-se com os povos cocaros paquistaneses e assim dominar uma parte do Panjabe (entre os atuais Paquistão e Índia). De lá, Jalaladim liderou seu exército até as terras pérsias, tomando cidades como Hamadã e Tabriz dos mongóis. No outono de 1225, seu exército chegou à Geórgia, exigindo a subordinação do reino sob seu domínio. A nobreza georgiana não conhecia seu exército e não levou a ameaça a sério, respondendo com uma carta que lembrava o terrível fim de seu povo contra os mongóis.
Rusudana enviou mensageiros por todo o reino para recrutar guerreiros ao seu exército, o que resultou numa força de cem mil homens. Por subestimarem o exército de Jalaladim, setenta mil guerreiros foram enviados ao vilarejo de Garni para derrotarem os islâmicos. Quando chegaram lá, foram recebidos por um exército de duzentos mil homens. A única vantagem que os georgianos tinham era de estarem nas terras mais altas, mas mesmo assim a comunicação entre os comandantes falhou. O corpo principal do exército permaneceu estacionário, perdendo a única chance de cercar o inimigo, e as vanguardas estavam sendo dizimadas. O comandante do corpo principal, então, ordenou que suas tropas abandonassem o campo de batalha, deixando os outros dois comandantes da vanguarda nas mãos dos inimigos.
Mais uma vez, os conflitos internos entre os comandantes feudais aleijaram as defesas do reino, e o resultado da traição foi a aniquilação de um quarto do exército georgiano, impossibilitando qualquer força de defesa contra os mongóis. Com isso, Rusudana e sua corte traíram a capital Tiblissi e fugiram para a cidade de Cutaissi, próxima ao litoral do Mar Negro. Demétrio desertou para o exército de Jalaladim, e converteu-se novamente ao islamismo. Em 9 de março de 1226, os corásmios chegaram às muralhas de Tiblissi. O exército georgiano conseguiu afastá-los, mas, durante a noite, um grupo de islâmicos infiltrados na cidade abriu os portões, e todo o exército adentrou Tiblissi.
- “Palavras são incapazes de transmitir a destruição que o inimigo causa: arrancando os bebês de suas mães, eles batem suas cabeças contra a ponte, observando como seus olhos caem do crânio.”
Assim escreveu o cronista que testemunhou o dia mais sangrento da história da Geórgia. Os corásmios ordenaram que todos os habitantes se convertessem ao islamismo, e aqueles que negassem seriam entregues às mais terríveis torturas. Os teóforos georgianos foram fiéis a Cristo, e corajosamente O confessaram perante os muçulmanos. Então, foram entregues a atrocidades tão macabras que esta enciclopédia deter-se-á de explicitá-las, atrocidades as quais questionam qual é o limite do homem que se consagra ao príncipe das trevas, o próprio satã. Mães eram esfaqueadas sem misericórdia na frente de seus filhos, e as ruas de Tiblissi foram cobertas por um rio de sangue. A cidade estremeceu ao som dos prantos e lamentações.
Jalaladim destruiu a cúpula da Catedral Patriarcal da Dormição e profanou-a para fazê-la sua morada. Sob seu comando, os islâmicos depositaram os enormes ícones de Jesus Cristo e da Mãe de Deus no centro da ponte sobre o Rio Ciro. Depois, ordenaram que todos os habitantes de Tiblissi atravessassem a ponte e cuspissem nos ícones. Aqueles que traíam a Cristo e zombavam dos ícones eram poupados, enquanto que os valentes confessores por Cristo eram impiedosamente decapitados pelos islâmicos, e seus corpos eram jogados ao rio.
Cem mil foram os que sacrificaram suas vidas e permaneceram fiéis à promessa dada por Cristo a São Jorge. Dez vezes dez mil almas foram ceifadas na terra e coroadas por Cristo no Reino dos Céus. Cem vezes mil crianças, virgens, padres, camponeses, idosos e indefesos foram transladados ao perpétuo coro dos mártires, e lá juntaram-se ao seu grande e vitorioso padroeiro. Vê, ó leitor, um rio vermelho desde seu leito e congestionado por mil centenas de corpos e crânios lentamente flutuando em direção ao Mar Cáspio. Cem mil cristãos traídos pelo seu próprio governo. Cem mil cristãos a espera da promessa de Roma, que nunca foi cumprida.
Pós-vida
Graças às orações das santas miríades de mártires, a Geórgia é hoje uma das nações mais fiéis a Cristo de toda a Ecumene. Todos os anos, durante a Festa dos Cem Mil, uma grande celebração toma conta da ponte na qual eles foram martirizados, presidida pelo próprio Patriarca da Geórgia, e dura do raiar do sol até a noite. A multidão enche o rio de grinaldas de flores em amor aos santos, representando suas incorruptíveis coroas nos Céus. (ver fotos)
Ligações externas
- Cem Mil Mártires de Tiblissi (Igreja Ortodoxa na América, OCA)
- Cem Mil Mártires de Tiblissi (João Sanidopoulos)